quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A macro vai nua


[Expresso, Caderno de Economia]

Paul Romer publicou por estes dias um artigo intitulado “The trouble with macroeconomics” no qual, com igual mestria no uso do rigor técnico e do humor, desfaz, de uma vez, os defensores de modelos macroeconómicos com nomes tão apelativos como “RBC” ou os seus sucessores envergonhados, os “DSGE”.

Se não percebeu nada, não faz mal. A aparente complexidade e deliberada opacidade destes modelos serve precisamente o propósito de disfarçar a sua inerente e irremediável inutilidade. São usados, dizem-nos, para “prever” o andamento da Economia.

Pior, foram muitas vezes usados para validar ou invalidar determinadas opções de política orçamental e económica. Em Portugal, este tipo de modelos e a sua utilização ficaram conhecidos como o Excel do Gaspar. Se se recordam, qualquer semelhança entre as previsões ali feitas e a realidade foram mera coincidência.

A razão, já o sabíamos, é que estes e outros “modelos” do género são incapazes de (re)conhecer a realidade, feridos de morte pela sua falta de cientificidade, mal disfarçada pelo uso extensivo de pseudo complexas fórmulas matemáticas, as quais, uma vez espremidas, não são mais do que um exercício de pura especulação ao nível da astrologia (a qual, não por acaso, também se socorre de pretensos cálculos complexos, apenas acessíveis a uns poucos iniciados).

Paul Romer não é o primeiro a dizê-lo, mas é uma voz importante, não tanto por ser um académico respeitado, com dezenas de artigos publicados, tendo passado pelas Universidades de Chicago, Berkeley, Stanford e Nova Iorque, mas porque acaba de ser nomeado para economista-chefe do Banco Mundial. O que era dito apenas por pessoas deliberadamente mantidas fora do circuito “certo” do pensamento macroeconómico (outro aspecto que o artigo trata de forma superior) é agora trazido para o mainstream.  

Talvez agora se possa voltar a dizer que a Economia não se faz de e para fórmulas abstractas, mas de e para as pessoas. Porque, no fim, se uma Economia não serve as pessoas (a maioria das pessoas), serve para quê?

Do ponto de vista das Finanças Públicas, que é o meu, isto permite que as voltemos a pensar como Sousa Franco as via: “verdadeiro termómetro das relações concretas entre o poder e a sociedade que o integra, bem como das tarefas que esta leva o poder a desempenhar, e do modo como os grupos, estratos ou classes sociais se situam perante o poder, beneficiando dos seus gastos ou suportando o respectivo custo”.


Já não era pouco. Devíamos pensar nisso.

Um País diferente. Para pior


[expresso on-line]

Já se sabia. O País é, hoje, um País diferente do que era há alguns anos atrás. Os dados que vão sendo conhecidos, os famigerado números, vão como sempre fazem, dando uma visão parcial e incompleta do que se passou. Ainda assim, melhor que a cegueira total. O Expressopublicou, há dias, com base num estudo da FFMS, alguns desses números.
Num parágrafo? A crise pesou mais em quem menos tem, somos hoje um País mais desigual, e quem vive do seu trabalho vive cada vez pior.
Como adverte Eduardo Paz Ferreira “A aceitação da desigualdade foi-se instalando no pensamento económico e na prática política dominantes, conduzindo-nos à dramática crise de 2007-2008 […]. A crise levou a que muitos pensassem que se abria uma oportunidade para […] construir sociedades mais justas. Nada de mais errado: […] nada foi feito para corrigir as injustiças sociais.” (in “Por uma Sociedade Decente”, p. 41).
Noutra altura a confirmação do que muitos foram afirmando estar a acontecer levantaria um coro de protestos e uma discussão acesa sobre que sociedade temos e que sociedade queremos ter.
Ao invés, boa parte do País passou a semana ocupado com a injustiça de um imposto sobre quem detém património de valor elevado, isto é, com Valor Patrimonial Tributário acima de um milhão de Euros (ou metade disso, consoante quem se ouça) e se isso não seria castigar a classe média.
Seria cómico se não fosse trágico. A única definição de classe média compatível com esta posição populista e demagógica é a célebre de um dirigente do PSD que demonstrou porque é que, com 10.000€ de salário, seria complicado a um casal viver (vale sempre a pena rever os 57 segundos em causa). Isto no país onde cerca de 3 milhões de agregados familiares não ganha isso … por ano. Maior alienação seria difícil.
Enquanto isso os sempre inoportunos números, neste caso do Eurostat, lembram que 2,88 milhões de pessoas estavam em risco de pobreza em Portugal no ano passado, um número bastante superior ao de 2008. Andámos, para trás, a passo de corrida. Surpreendidos? Só os mais distraídos.
Desde o ano passado que se sabe que, pelo menos, 3,6 mil milhões de euros desapareceram do rendimento do trabalho enquanto a remuneração de capital aumentou em 2,6 mil milhões de euros.
Esta significativa (que acreditamos poder estar subestimada) transferência de riqueza do trabalho para o capital teria que se reflectir nos demais indicadores. Aqui os temos. Dúvidas esclarecidas.
Enquadramento político à parte (e muito haveria a dizer) há uma consequência importante a retirar, e desde já, economias mais desiguais crescem menos.
Não que isso interesse àqueles cuja fatia de riqueza aumenta mesmo quando o tamanho do bolo da Economia diminui. Deveria, contudo, interessar bastante a todos os outros, e a quem se preocupe com algo mais do que com a sua finita existência.
E esses todos os outros somos uma imensa maioria. Só temos de deixar de aceitar a desigualdade como uma fatalidade. Se possível, hoje.

Yes, Minister


[originalmente no Expresso de 28.09]


Depois de ter anunciado que o diabo chegaria em setembro (e de setembro já pouco resta) o PSD foi confrontado com dados de execução orçamental nada consentâneos com a mensagem que estava a ser passada, a de que vinha aí um descontrolo das contas públicas.
Talvez por desespero, no PSD passou-se à fase de acusar“[Mário] Centeno de “falsear” dados da execução orçamental”. Se a mensagem não convém, mate-se o mensageiro. A golpes de demagogia.
Esta acusação foi logo replicada levianamente, entre outros, porDuarte Marques, nada que surpreenda neste defensor acérrimo da ida de Durão Barroso para a Goldman Sachs, que despachou as críticas públicas de François Hollande com um lapidar “É o que faltava agora um socialista francês a dar lições de moral”. Deixou, contudo, por esclarecer se a ilegitimidade de Hollande é por ser francês, por ser socialista, ou uma mescla das duas (e em que proporção). Neste caso falou apenas de pagar o que se deve, adicionando um tom populista a uma acusação demagógica.
Vão para nota de rodapé as considerações substantivas que tal merece (1), porque o ponto hoje não é esse. O ponto é este: não é Mário Centeno que prepara as dezenas de páginas que refletem os dados da execução orçamental.
Na ânsia de matar o mensageiro o PSD cria danos colaterais importantes. Desde logo a Direção-Geral do Orçamento, os seus serviços, dezenas e dezenas de servidores do Estado, e a sua responsável máxima, no caso, Maria Manuela dos Santos Proença, diretora-geral do Orçamento.
Convém ainda lembrar que estes dados são acompanhados a par e passo, por estes dias, entre outros, pela Comissão Europeia, o FMI, o BCE, duas autoridades estatísticas, a UTAO e o Conselho de Finanças Públicas.
Ora, para além de ser preciso não conhecer – de todo – a diretora-geral para a imaginar a responder a um pedido de adulterar as contas públicas com um singelo e subserviente “Yes, Minister” este é um assassinato de carácter gratuito, e muito perigoso, dela e daqueles que ela dirige.
Em abstrato o regime de nomeação dos titulares de cargos de topo na administração criado pelo PS e muito refinado pelo PSD é um desastre de proporções épicas sob vários pontos de vista: as escolhas não são políticas, mas muitas são políticas, a CRESAP serve apenas para legitimar o anteriormente escandaloso, e os mandatos por cinco anos significam que um Governo pode ter uma administração de topo politizada e hostil, recebida de herança. Na ânsia de irmos para o modelo Inglês, com uma administração com dirigentes independentes do poder político (realidade não isenta de defeitos, como a série que deu nome a este texto divertidamente ilustra) ficámos com o pior de dois mundos: não há garantia de escolha apolítica mas temos prazos longos de mandato. Muito típico do nosso país.
No caso da dirigente em causa, seria de esperar que fosse respeitada pela sua independência estatutária. Mais não fosse porque a insinuar-se, por absurdo, que ela teria sido uma escolha política encapotada, capaz de sacrificar o seu exercício do cargo e serviço ao país a ditames partidários menores, tais seriam, obviamente, os de quem a nomeou … o Governo PSD. Duas vezes. Por Vítor Gaspar em Janeiro de 2012 e por Maria Luís Albuquerque, em Junho de 2014.
Pelo caminho, os senhores deputados usam como carne para canhão da demagogia política os dirigentes e serviços da Administração Pública. Não é propriamente a primeira vez, mas a repetição só agrava a conduta.
Num tempo em que ser Funcionário Público por vezes parece pecado, lançar acusações desta gravidade é contribuir para desvalorizar ainda mais o exercício de cargos que, já agora, são menos bem remunerados do que a média do mercado privado paga para as mesmas responsabilidades.
Qualquer dia o Estado não consegue recrutar ninguém com mérito. Depois venham queixar-se da qualidade dos serviços públicos.
(1) Quanto à acusação de que o Governo está deliberadamente a atrasar pagamentos ela falece quando se lê a Síntese da Execução Orçamenta de Agosto.
Lendo o dito documento até ao fim, tarefa sempre monótona, encontramos o pouco sexy e pouco lido Anexo 16 (pp. 66) onde se vê que os pagamentos em atraso são apenas marginalmente superiores aos do ano passado na mesma data. Tirar daí uma vasta conspiração para falsificar os dados é, no mínimo, forçado. Mais, no que respeita ao passivo não financeiro, na parte sob responsabilidade do Governo (administração central), este até diminui face ao ano anterior (de 504 para 466 milhões de Euros) e face ao mês anterior (de 480 para os mesmos 466). Ora isso é sinal de que não há nenhum descontrolo.
A segunda acusação é a de que o Governo não executou despesa de investimento. Ora, se não executou, queria-se que tal constasse da execução orçamental? Como? Só se fosse falsificando a mesma. Portanto, partir daí para insinuar manipulação das contas públicas é ilógico. Coisa diferente, e bem mais importante, é discutir se não faz falta mais investimento público.
Por acaso faz (ao contrário do que o PSD tem defendido), mas há três fatores que recomendam esperar pelo fim do ano para avaliar essa execução:
  1. O orçamento entrou em vigor só em Maio;
  2. Como qualquer pessoa que não seja um teórico sabe o procedimento para executar despesa pública demora, muitas vezes, meses a cumprir; e
  3. As alterações ao Programa Portugal 2020 poderão ou não vir a permitir inverter esta tendência até ao final do ano.

domingo, 18 de setembro de 2016

Anatomia de um monumental falhanço


Originalmente publicado no Expresso em 14.09.2016

Os dogmas existem para serem discutidos. E hoje vamos pegar num: o Banco Central Europeu é competente. Ser competente, vamos admitir, é cumprir adequadamente a sua função, isto é, os objectivos que lhe são fixados pelos Tratados.
Se o referencial aceite for este a resposta é rápida: o BCE tem sido completamente incompetente na gestão da moeda única nos últimos anos e nada aponta para que essa realidade venha a mudar.
Desde logo, o BCE (e, vamos convir, a generalidade dos agentes políticos e económicos, jornalistas e, o que é um nadinha mais grave, académicos) não percebe – ou não quer perceber, porque a Alemanha não o aceita - qual é o mandato que lhe está fixado.
Alega-se que o Banco tem como objectivo único manter a inflação próxima mas abaixo dos 2%, isto é, estabilidade de preços e que qualquer outro objectivo lhe está vedado. Nada mais errado, como uma leitura dos Tratados permite perceber.
Desde logo, o BCE não tem um mandato único: tem um mandato primário (na redacção inglesa dos Tratados) ou primordial, na discutível versão portuguesa. Primordial, ou primário indicam, desde logo, que é um, e o principal, mas não o único.
Basta ler o Artigo 127.º n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia até ao fim e não de forma truncada. O que o tratado diz é que, desde que não se comprometa o objectivo de estabilidade de preços (no médio e longo prazo, acrescentamos nós) o BCE tem como mandato, não como opção que livremente exercerá, mas como uma obrigação que sobre ele impende, contribuir para a prossecução dos fins da União fixados no Artigo 3.º do Tratado da União Europeia. Aí se compreende um mandato amplo que inclui, entre outros, ter como “meta o pleno emprego e o progresso social”, fomentar o “combate [à] exclusão social e [à]s discriminações e promove[r] a justiça e a protecção sociais”.
Mas vamos ser generosos: vamos supor que o mandato do BCE é a versão minimalista que o mesmo entende aplicar-se. Como estamos de cumprimentos do objectivo de uma inflação próxima, mas abaixo, dos 2%? Mal.
No remanso de agosto o próprio BCE publicou na sua Working Paper Series um artigo intitulado “Anchoring of inflation expectations in the euro area: recent evidence based on survey data”.
Dele resultam três coisas simples: O BCE tem falhado sistematicamente as suas previsões para a inflação a um e dois anos, e sempre por excesso; o próprio BCE já admite que, mesmo na sua perspectiva optimista, o cumprimento do mandato de inflação próxima mais abaixo dos 2% não ocorrerá antes de 2018 e, pasme-se, este quadro prejudica a credibilidade do próprio BCE junto dos agentes económicos que vão dando sinais de estarem a “desancorar” as suas perspectivas sobre inflação das projecções do BCE.
Ora um Banco Central que não consegue gerir expectativas de inflação a médio longo prazo deixa de ser capaz de executar uma política monetária.
Se isto não é ser incompetente, então não há incompetentes.
PS – As opiniões aqui expressas são, como é usual, a título estritamente pessoal.


A vida dá muitas voltas


E este blogue volta à vida. Em parte para acolher os textos que vou publicando por aí, em parte (espero) para retomar algum carácter de apoio à actividade lectiva no qual lhe tenho sentido a falta.

Ano novo, vida nova. E para nós na Academia, o ano começou agora.