[originalmente no
Expresso de 28.09]
Depois de ter anunciado que o diabo chegaria em setembro (e de setembro já pouco resta) o PSD foi confrontado com dados de execução orçamental nada consentâneos com a mensagem que estava a ser passada, a de que vinha aí um descontrolo das contas públicas.
Esta acusação foi logo replicada levianamente, entre outros, por
Duarte Marques, nada que surpreenda neste defensor acérrimo da ida de Durão Barroso para a Goldman Sachs, que despachou as críticas públicas de François Hollande com um lapidar “
É o que faltava agora um socialista francês a dar lições de moral”. Deixou, contudo, por esclarecer se a ilegitimidade de Hollande é por ser francês, por ser socialista, ou uma mescla das duas (e em que proporção). Neste caso falou apenas de pagar o que se deve, adicionando um tom populista a uma acusação demagógica.
Vão para nota de rodapé as considerações substantivas que tal merece (1), porque o ponto hoje não é esse. O ponto é este: não é Mário Centeno que prepara as dezenas de páginas que refletem os dados da execução orçamental.
Na ânsia de matar o mensageiro o PSD cria danos colaterais importantes. Desde logo a Direção-Geral do Orçamento, os seus serviços, dezenas e dezenas de servidores do Estado, e a sua responsável máxima, no caso, Maria Manuela dos Santos Proença, diretora-geral do Orçamento.
Convém ainda lembrar que estes dados são acompanhados a par e passo, por estes dias, entre outros, pela Comissão Europeia, o FMI, o BCE, duas autoridades estatísticas, a UTAO e o Conselho de Finanças Públicas.
Ora, para além de ser preciso não conhecer – de todo – a diretora-geral para a imaginar a responder a um pedido de adulterar as contas públicas com um singelo e subserviente “Yes, Minister” este é um assassinato de carácter gratuito, e muito perigoso, dela e daqueles que ela dirige.
Em abstrato o regime de nomeação dos titulares de cargos de topo na administração criado pelo PS e muito refinado pelo PSD é um desastre de proporções épicas sob vários pontos de vista: as escolhas não são políticas, mas muitas são políticas, a CRESAP serve apenas para legitimar o anteriormente escandaloso, e os mandatos por cinco anos significam que um Governo pode ter uma administração de topo politizada e hostil, recebida de herança. Na ânsia de irmos para o modelo Inglês, com uma administração com dirigentes independentes do poder político (realidade não isenta de defeitos, como a série que deu nome a este texto divertidamente ilustra) ficámos com o pior de dois mundos: não há garantia de escolha apolítica mas temos prazos longos de mandato. Muito típico do nosso país.
No caso da dirigente em causa, seria de esperar que fosse respeitada pela sua independência estatutária. Mais não fosse porque a insinuar-se, por absurdo, que ela teria sido uma escolha política encapotada, capaz de sacrificar o seu exercício do cargo e serviço ao país a ditames partidários menores, tais seriam, obviamente, os de quem a nomeou … o Governo PSD. Duas vezes. Por Vítor Gaspar em Janeiro de 2012 e por Maria Luís Albuquerque, em Junho de 2014.
Pelo caminho, os senhores deputados usam como carne para canhão da demagogia política os dirigentes e serviços da Administração Pública. Não é propriamente a primeira vez, mas a repetição só agrava a conduta.
Num tempo em que ser Funcionário Público por vezes parece pecado, lançar acusações desta gravidade é contribuir para desvalorizar ainda mais o exercício de cargos que, já agora, são menos bem remunerados do que a média do mercado privado paga para as mesmas responsabilidades.
Qualquer dia o Estado não consegue recrutar ninguém com mérito. Depois venham queixar-se da qualidade dos serviços públicos.
Lendo o dito documento até ao fim, tarefa sempre monótona, encontramos o pouco sexy e pouco lido Anexo 16 (pp. 66) onde se vê que os pagamentos em atraso são apenas marginalmente superiores aos do ano passado na mesma data. Tirar daí uma vasta conspiração para falsificar os dados é, no mínimo, forçado. Mais, no que respeita ao passivo não financeiro, na parte sob responsabilidade do Governo (administração central), este até diminui face ao ano anterior (de 504 para 466 milhões de Euros) e face ao mês anterior (de 480 para os mesmos 466). Ora isso é sinal de que não há nenhum descontrolo.
A segunda acusação é a de que o Governo não executou despesa de investimento. Ora, se não executou, queria-se que tal constasse da execução orçamental? Como? Só se fosse falsificando a mesma. Portanto, partir daí para insinuar manipulação das contas públicas é ilógico. Coisa diferente, e bem mais importante, é discutir se não faz falta mais investimento público.
Por acaso faz (ao contrário do que o PSD tem defendido), mas há três fatores que recomendam esperar pelo fim do ano para avaliar essa execução:
- O orçamento entrou em vigor só em Maio;
- Como qualquer pessoa que não seja um teórico sabe o procedimento para executar despesa pública demora, muitas vezes, meses a cumprir; e
- As alterações ao Programa Portugal 2020 poderão ou não vir a permitir inverter esta tendência até ao final do ano.