Custa ver como a Europa se vai boicotando a si própria. A partir de uma teimosia. É o que o burro pode ser ensinado e mudar de caminho; o teimoso às vezes nem por isso.
Dito isto, este é um post long, chato, e absolutamente dispensável excepto para o autor organizar a sua própria cabeça. Mas, consta, é
também para isso que servem os blogs. Só não se diga que não foram avisados.
Cinco pontos sobre o Quantitative Easing que o BCE diz que vai fazer (pela
undécima vez):
1) Pode o BCE agir para fazer outra coisa que não controlar a inflação,
isto é, tem um papel a desempenhar no relançamento da Economia?
Sim.
Muitas vozes têm dito que o BCE estará já a fazer mais do que o mandato que
lhe está atribuído, desde logo as vindas do Bundesbank e de certos sectores do
pensamento económico.
Alegam, e o próprio BCE tem suportado esta visão, que o banco tem como
objectivo único manter a inflação próxima dos 2%, isto é, estabilidade de
preços e que qualquer outro objectivo lhe está vedado.
Este racional é muitas vezes invocado para explicar as diferenças entre as
políticas mais agressivas no combate à crise da Reserva Federal
Norte-Americana, do Banco de Inglaterra ou, mais recentemente, do Banco Central
Japonês.
Nada mais errado, como uma leitura dos Tratados permite perceber. Desde
logo, o BCE não tem um mandato único: tem um mandato primário (na redacção
inglesa dos Tratados) ou primordial, na discutível versão portuguesa.
Em qualquer caso, o que diz o Artigo 127.º n.º 1 do Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia é o seguinte:
“O objectivo primordial do
Sistema Europeu de Bancos Centrais, adiante designado «SEBC», é a manutenção da
estabilidade dos preços.”
Primordial, ou primário indicam, desde logo, que é um, e o principal, mas
não o único.
Aspecto que é reforçado pela continuação do mesmo artigo 127.º n.º 1 que
esclarece:
“Sem prejuízo do objectivo da
estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União
tendo em vista contribuir para a realização dos objectivos da União tal como se
encontram definidos no artigo 3.o do Tratado da União Europeia.”
Literalmente, o que o tratado diz é que, desde que não se comprometa o
objectivo de estabilidade de preços (no médio e longo prazo, acrescentamos nós)
o BCE tem como mandato, não como opção que livremente exercerá, mas como uma
obrigação que sobre ele impende, contribuir para a prossecução dos fins da
União fixados no Artigo 3.º do Tratado da União Europeia.
O qual, por sua vez, dispõe (destaques nossos):
“A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no
desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado
altamente competitiva que tenha como meta
o pleno emprego e o progresso social e num elevado nível de protecção e de
melhoramento da qualidade do ambiente. A União fomenta o progresso científico e
tecnológico.
A União combate a
exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a protecção sociais,
a igualdade entre homens e mulheres, a
solidariedade entre as gerações e a protecção dos direitos da criança.
A União promove a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade
entre os Estados-Membros.”
Ora no actual
contexto, quer numa visão de curto prazo, quer numa visão de médio-longo prazo
a Europa não enfrenta pressões inflacionistas. Aliás, se algum risco se tem de
assumir é a possibilidade de termos um cenário de deflação com taxas de juro
baixas, o tipo de ciclo vicioso em que o Japão esteve durante muitos anos.
Logo, se o
objectivo primordial está atingido, o BCE não só pode como deve tentar
contribuir para a realização dos demais objectivos. Assim, uma política
monetária seja ela "convencional" ou "não convencional"
mais agressiva indexada, por exemplo, como fez recentemente a Reserva Federal
Norte-americana, a um dado objectivo de baixa do desemprego, é não só permitida
como imposta pelos Tratados.
2) O QE resulta?
Bom, depende do sistema financeiro estar em condições. Resultou nos Estados
Unidos. Dúvido que resulte na Europa (já lá vamos).
Desemprego lá:
Cá ... cá vamos assim. E em Portugal pior que a
média (aquele número entretanto desceu mas ainda é mais do dobro dos números
americanos).
O mesmo se passa, obviamente, com o PIB.
3) E as medidas anteriores? Os LTRO e afins, para que serviram?
Bom, para forrar de dinheiro os Bancos na Europa do Norte à custa da
posição relativa dos Bancos da Europa do Sul. Não é interessante?
4) Mas fazer QE não é ter logo uma inflação galopante. Afinal, imprimir
dinheiro está sempre errado por isso, não é?
Não:
5) Mas se o QE à americana não funcionar também ele na Europa ficámos sem
mais opções, certo, portanto, isso prova que nada se deve fazer?
Mentira. Há sempre opções. Ainda que possam ser polémicas. Como a que já
defendemos no Diário Económico, com o texto original (citado
aqui em itálico) agora acompanhado da inclusão de alguns gráficos e breves
referências bibliográficas, incompatíveis com as limitações de espaço naturais
num artigo de opinião.
Mark Blyth, no seu recentíssimo “Print Less but Transfer More - Why Central
Banks Should Give Money Directly to the People” (com Eric Lonergan) trouxe para
a discussão pública uma questão que tem sido remetida ao obscurantismo pela
força dominante do pensamento alemão sobre o papel que um Banco Central pode e
deve ter quando confrontado com uma crise económica.
O artigo está integralmente
disponível no número deste mês da Foreign Affairs, e pode ser consultado aqui.
Se aceitarmos a premissa de que, perante um cenário de inflação muito
baixa, ou mesmo deflação, com taxas de juro já próximo do zero, o Banco Central
deixa de conseguir estimular a economia com políticas monetárias ditas
convencionais (via taxa de juro), temos de aceitar a consequência: são precisas
medidas não convencionais. De preferência, já.
Sobre este conceito veja-se, por
todos, Paul Krugman, por exemplo aqui e aqui.
Mas até aí a Europa enfrenta um cenário difícil. Copiar as políticas não
convencionais americana, inglesa ou japonesa é uma solução melhor que não fazer
nada, mas está longe de ser a ideal. O chamado Quantitative Easing depende um
sector financeiro capaz de funcionar como correia de transmissão à economia
real do alívio monetário, mas temos uma Banca tolhida pelo peso de balanços
gigantescos cuja limpeza de imparidades está por fazer.
Os dados em presença são estes
(retirados a conferência de Mark Blyth em Lisboa, a convite do IDEFF,
disponível aqui).
É verdade que os Bancos
americanos têm balance sheets muito expressivas:
Mas não é menos verdade que a
situação é muito pior na Europa, mais de duas vezes pior:
E, cálculos nossos, o mesmo se
passa em Portugal (dados de finais de 2012):
Mais provas fossem precisas,
basta termos em conta que dois gigantescos LTRO se traduziram em resultados
nulos quanto à concessão de crédito à economia, que continuou em queda:
É nesse contexto que a proposta de Mark Blyth assume particular
importância: oferece um caminho alternativo e com vantagens. O estímulo monetário
à Economia feito directamente junto das famílias é, desde logo, mais rápido nos
seus efeitos. Como cada pessoa terá as suas prioridades (consumo, aforro,
investimento), não teremos a criação de bolhas de activos, como é provável no
QE tradicional. E, por fim, pode por essa via fazer‑se um reequilíbrio ad-hoc e
interino, da Zona Euro, que continuará a precisar, para o futuro, de mecanismos
permanentes com o mesmo objectivo. A reacção não será boa. Para além do
fantasma alemão da inflação (historicamente falso e culturalmente empolado),
vamos ouvir falar de “radicalismos”. Mas esta é uma proposta tudo menos
marginal. Basta ver o que sobre ela escreveram, entre outros, Milton Friedman,
ou Bernard Bernanke.
Sobre o erro histórico alemão de
associar o fenómeno da inflação ao surgimento do regime nazi, sendo que o mesmo
beneficiou muito mais do período de deflação pode ver-se o excelente sumário da
insuspeita Economist, e as fontes aí
referidas.
Para melhor conhecer a posição de
Bernandke ver aqui.
O óbice final? A Alemanha, que continua a fingir que não percebe que,
enquanto uma das maiores beneficiárias do Euro, sob a forma de uma zona de
comércio livre para os seus produtos com 500 milhões de consumidores e uma taxa
de câmbio manifestamente mais favorável do que a que teria sozinha, não pode
continuar a insistir em reservar esses ganhos para si e só para si. Entre 1992
e 2012 o PIB per capita alemão aumentou 450€. O português? 20. Alguma coisa tem
de ser feita.
Quanto ao benefício em termos
cambiais da Alemanha vejam-se os seguintes dados (de Dominick Salvatore):
A quantificação dos dados sobre
os ganhos no PIB per capita resulta de um paper recentíssimo (disponível, no
sumário em inglês, aqui), de que se destacam
estas informações, citadas no texto:
Não seria a primeira vez que a Alemanha destruía a harmonia na Europa, mas
convém ainda assim evitar que tal se repita. Só depende de todos nós.
Esta conclusão, infelizmente, não
precisará de fontes ou dados adicionais. É dos livros de História. Aquela que, infelizmente,
se pode sempre repetir.