quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Sobre o BCE, a austeridade e o que são políticas alternativas


Pedro Lains explicou, ontem, na SIC Notícias, duas coisas simples: sim, temos uma moeda e podemos ter uma política  monetária que ajude em vez de atrapalhar e não, não é uma fatalidade que o BCE não possa fazer nada, é uma opção política que pode e deve ser tratada como tal.

Nem a jornalista nem os colegas de painel perceberam bem: estão ainda convitos que o BCE tem como mandato único conter a inflação. Afinal, é a "verdade" que nos tem sido vendida, de Frankfurt a Bruxelas, do Terreiro do Paço a S. Bento.

Não é verdade. Pedro Lains tem razão e os seus colegas de circunstância não. E agora, para quem tiver paciência, o porquê:



Muitas vozes têm dito que o BCE estará já a fazer mais do que o mandato que lhe está atribuído, desde logo as vindas do Bundesbank e de certos sectores do pensamento económico.

Alegam, e o próprio BCE tem suportado esta visão, que o banco tem como objectivo único manter a inflação próxima dos 2%, isto é, estabilidade de preços e que qualquer outro objectivo lhe está vedado.

Este racional é muitas vezes invocado para explicar as diferenças entre as políticas mais agressivas no combate à crise da Reserva Federal Norte-Americana, do Banco de Inglaterra ou, mais recentemente, do Banco Central Japonês.

Nada mais errado, como uma leitura dos Tratados permite perceber. Desde logo, o BCE não tem um mandato único: tem um mandato primário (na redacção inglesa dos Tratados) ou primordial, na discutível versão portuguesa.

Em qualquer caso, o que diz o Artigo 127.º n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia é o seguinte:

“O objectivo primordial do Sistema Europeu de Bancos Centrais, adiante designado «SEBC», é a manutenção da estabilidade dos preços.”

Primordial, ou primário indicam, desde logo, que é um, e o principal, mas não o único.

Aspecto que é reforçado pela continuação do mesmo artigo 127.º n.º 1 que esclarece:

“Sem prejuízo do objectivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União tendo em vista contribuir para a realização dos objectivos da União tal como se encontram definidos no artigo 3.o do Tratado da União Europeia.”

Literalmente, o que o tratado diz é que, desde que não se comprometa o objectivo de estabilidade de preços (no médio e longo prazo, acrescentamos nós) o BCE tem como mandato, não como opção que livremente exercerá, mas como uma obrigação que sobre ele impende, contribuir para a prossecução dos fins da União fixados no Artigo 3.º do Tratado da União Europeia.

O qual, por sua vez, dispõe (destaques nossos):

“A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social e num elevado nível de protecção e de melhoramento da qualidade do ambiente. A União fomenta o progresso científico e tecnológico.
A União combate a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a protecção sociais, a igualdade entre homens e mulheres, a solidariedade entre as gerações e a protecção dos direitos da criança.
A União promove a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os Estados-Membros.”

Ora no actual contexto, quer numa visão de curto prazo, quer numa visão de médio-longo prazo a Europa não enfrenta pressões inflacionistas. Aliás, se algum risco se tem de assumir é a possibilidade de termos um cenário de deflação com taxas de juro baixas, o tipo de ciclo vicioso em que o Japão esteve durante muitos anos.

Logo, se o objectivo primordial está atingido, o BCE não só pode como deve tentar contribuir para a realização dos demais objectivos. Assim, uma política monetária seja ela "convencional" ou "não convencional" mais agressiva indexada, por exemplo, como fez recentemente a Reserva Federal Norte-americana, a um dado objectivo de baixa do desemprego, é não só permitida como imposta pelos Tratados.

E se assim é, porque não está a discussão focada neste aspecto? 

Marco Capitão Ferreira