Pedro Lains explicou, ontem, na SIC Notícias, duas coisas simples: sim, temos uma moeda e podemos ter uma política monetária que ajude em vez de atrapalhar e não, não é uma fatalidade que o BCE não possa fazer nada, é uma opção política que pode e deve ser tratada como tal.
Nem a jornalista nem os colegas de painel perceberam bem: estão ainda convitos que o BCE tem como mandato único conter a inflação. Afinal, é a "verdade" que nos tem sido vendida, de Frankfurt a Bruxelas, do Terreiro do Paço a S. Bento.
Não é verdade. Pedro Lains tem razão e os seus colegas de circunstância não. E agora, para quem tiver paciência, o porquê:
Muitas vozes têm dito que o BCE estará já a fazer mais do
que o mandato que lhe está atribuído, desde logo as vindas do Bundesbank e de
certos sectores do pensamento económico.
Alegam, e o próprio BCE tem suportado esta visão, que o
banco tem como objectivo único manter a inflação próxima dos 2%, isto é,
estabilidade de preços e que qualquer outro objectivo lhe está vedado.
Este racional é muitas vezes invocado para explicar as
diferenças entre as políticas mais agressivas no combate à crise da Reserva
Federal Norte-Americana, do Banco de Inglaterra ou, mais recentemente, do Banco
Central Japonês.
Nada mais errado, como uma leitura dos Tratados permite
perceber. Desde logo, o BCE não tem um mandato único: tem um mandato primário
(na redacção inglesa dos Tratados) ou primordial, na discutível versão
portuguesa.
Em qualquer caso, o que diz o Artigo 127.º n.º 1 do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia é o seguinte:
“O
objectivo primordial do Sistema Europeu de Bancos Centrais, adiante designado
«SEBC», é a manutenção da estabilidade dos preços.”
Primordial, ou primário indicam, desde logo, que é um, e o
principal, mas não o único.
Aspecto que é reforçado pela continuação do mesmo artigo
127.º n.º 1 que esclarece:
“Sem
prejuízo do objectivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas
económicas gerais na União tendo em vista contribuir para a realização dos objectivos
da União tal como se encontram definidos no artigo 3.o do Tratado da União
Europeia.”
Literalmente, o que o tratado diz é que, desde que não se
comprometa o objectivo de estabilidade de preços (no médio e longo prazo,
acrescentamos nós) o BCE tem como mandato, não como opção que livremente
exercerá, mas como uma obrigação que sobre ele impende, contribuir para a
prossecução dos fins da União fixados no Artigo 3.º do Tratado da União
Europeia.
O qual, por sua vez, dispõe (destaques nossos):
“A União estabelece um mercado interno.
Empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa
economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social
e num elevado nível de protecção e de melhoramento da qualidade do ambiente. A
União fomenta o progresso científico e tecnológico.
A União combate
a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a protecção sociais,
a igualdade entre homens e mulheres, a
solidariedade entre as gerações e a protecção dos direitos da criança.
A
União promove a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre
os Estados-Membros.”
Ora no actual contexto, quer numa visão de curto prazo, quer numa visão
de médio-longo prazo a Europa não enfrenta pressões inflacionistas. Aliás, se algum risco se tem de assumir é a possibilidade de termos um
cenário de deflação com taxas de juro baixas, o tipo de ciclo vicioso em que o
Japão esteve durante muitos anos.
Logo, se o objectivo primordial está atingido, o BCE não só pode como
deve tentar contribuir para a realização dos demais objectivos. Assim, uma política monetária seja ela "convencional" ou "não convencional" mais agressiva indexada, por exemplo, como fez
recentemente a Reserva Federal Norte-americana, a um dado objectivo de baixa do
desemprego, é não só permitida como imposta pelos Tratados.
E se assim é, porque não está a discussão focada neste aspecto?
Marco Capitão Ferreira
Marco Capitão Ferreira